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  • Foto do escritorRita Lança

A Ecologia Profunda Vivida

Neste artigo, abordo a relação entre a Ecologia Profunda, a Ética, a nossa identidade e a compaixão.


Desde o reconhecimento da minha história, desvelo rostos concretos e o modo como me têm espelhado a Ecologia Profunda.


Partindo de ressonâncias de pessoas que leram o primeiro artigo da série Ecologia Profunda, traço grandes linhas do acompanhamento que desenvolvo como Doula das Transições – os ecos da Terra a que procuro compassivamente responder.


Ecologia Profunda, Ética e Identidade


Viver a Ecologia Profunda, integrá-la na nossa vida, como um tecido que a permeia, é um processo ético, uma escolha moral, com efeitos práticos e visíveis, naquilo que o filósofo espanhol Fernando Savater (1995) considera ser o centro da Ética – a busca por uma “vida boa”- para nós e todos os seres.


Aprendi com um professor alemão que a ética começa no reconhecimento da paisagem que nos permeia internamente, a matéria que nos dá forma e é desde essa consciência que nos abrimos a outras perspectivas. Como abordei em um artigo anterior, a nossa identidade é dinâmica e muda com as transições que vivemos.


Que contornos assume a minha identidade? O meu caleidoscópio identitário abarca a humanidade, a Terra, o cosmos? Quais são os valores onde assento a minha vida, as minhas opções quotidianas?


A nossa identidade é profundamente social, moldada desde tenra idade pela aprendizagem social (Albert Bandura) e continuamente reconstruída na teia relacional onde nos movemos. Somos seres sociais, aprendemos observando e mimetizando outros.


Em conversa com a amiga Raquel Cajão- Enfermeira Parteira que tem acompanhado tantas famílias em contexto de parto em casa em Portugal- falávamos do quanto esta dimensão se nos torna mais consciente com a parentalidade e a responsabilidade que se sente, ao acompanhar um ser em crescimento. Um tronco comum em variadas religiões é pois esta dimensão do testemunho, como vector fulcral em processos de mudança pessoal e espiritual.


Os Rostos da Ecologia Profunda na Minha Vida


A Ecologia Profunda perpassa o ser que sou, emaranhada na tessitura identitária, cosida na teia comunitária na qual cresci.


Na vivência alentejana, intimamente telúrica, fui aprendendo a olhar os fenómenos da nossa vida como partes integrantes da ciclicidade que partilhamos com a Natureza. E essa semente em mim plantada tem espraiado as suas raízes terra adentro, mundo fora, em busca de água que a sacie e de luz que a alimente.


A história da minha vida está povoada de dádivas e são tantos os rostos que me têm ajudado a encontrar o fio à meada da Ecologia Profunda. Este artigo é também uma homenagem às suas vidas e escolhas concretas, que encarnam a “A Grande Viragem” de que fala Joanna Macy.


Como conheci o conceito de Ecologia Profunda


Para além da vida concreta que se esgueira à margem do universo conceptual, o conceito formal de Ecologia Profunda cruzou a minha história no ano de 2019, no Festival Mãe Terra, em Fafe. 


Nessa fase eu buscava uma nova configuração para servir o mundo e a primeira pista chegou justamente com um workshop sobre Ecologia Profunda, que fiz com o Nuno Silva. A morte ficou a ecoar nos meus dias, com uma presença securizante, já tinha uma direcção, ainda que não conseguisse vislumbrar a nova paisagem para a manifestar. Mas sabia o que farejava. E a partir daí fiquei hiper atenta, até que, no meu Círculo de Mulheres no Porto, me chegou a notícia de uma formação em Dragon Dreaming, que incluía o modelo da Ecologia Profunda. Foi assim que conheci o Ravi Resk – um incrível designer social, facilitador de novos processos colaborativos e tecnologias sociais- e me adentrei neste modelo, de um modo sustentado e com ferramentas concretas.


Mais tarde, no curso de doulas de fim de vida, conheci a Ana Sevinate, patrícia de alma alentejana, psicóloga clínica e psicoterapeuta em psicossíntese, membro da Ecopsicologia Portugal. Irmanadas na Ecologia Profunda, pedi-lhe que me acompanhasse, na vertente prática do curso, triangulando com base neste modelo o acompanhamento que desenvolvi no luto por suicídio.


Na verdade, este foi o momento em que encontrei uma configuração- gostamos de pôr a vida em caixinhas- mas esta dimensão só se espraiou desta forma rápida na minha vida porque encontrou terra lavrada e bem fértil de tantos e tantos anos a criar solo, rico, castanho, que respira. O tempo de pousio ajudou a terra a escolher as sementes que precisava.


A tessitura de que a Ecologia Profunda se reveste cresceu dentro de mim num contexto de profunda ligação aos ciclos da natureza. Ainda assim, houve fases da minha vida em que senti tristeza por ter pouca sensibilidade para matérias tecnológicas, nas quais observava os meus primos, crescidos em contextos urbanos, a fluírem tão livremente.


Aprendi a agradecer e a valorizar o património que herdei, que me permite reconhecer na sinfonia de rãs coaxando pura música sacra. E estes patrimónios que vamos coletando ao longo da vida, tal como o riso, também se propagam naturalmente por contágio, um contágio bom, que se move em espiral ☺


O contágio da Ecologia Profunda


Tenho aprendido Ecologia Profunda prática ao longo da minha diáspora pessoal… Em conversas com o Nuno Carvalhal, de Matosinhos, um amante deslumbrado, profundo conhecedor da Natureza e da sua linguagem própria, um criativo de como viver a Ecologia Profunda. Julgo que o Nuno terá sido a primeira pessoa a introduzir-me na Permacultura.


E, numa ocasião que me visitou no Algarve, vivia na sua carrinha e, entre outros, tomava banho com um pequeno borrifador para plantas, consumindo uma quantidade extraordinariamente pequena de água. A Christine e o Joachim, dois amigos alemães de Bamberg, conhecemo-nos a fazer trekking na bela paisagem vulcânica da ilha de Santo Antão em Cabo Verde. Com eles toquei a vida em sintonia com a Natureza, nas mais pequenas opções, desde a escolha de vestuário, cosméticos, opções de viagem, à alimentação. Adentrei-me numa ecologia nutricional e gastronómica natural incrível, comida super orgânica, nutritiva e saborosa, e percebi o que era viver de forma vegan de fio a pavio.


Com o Pedro Maia e a Magda Rouxinol- do Projecto Terra Culta em Castro Daire- recebi a semente do Vipassana, a técnica de meditação que mudou radicalmente a minha vida. Ainda com eles, aprendi imensas ferramentas práticas para o quotidiano e conheci imensos projectos que fazem da Ecologia Profunda uma realidade quotidiana, como Auroville, na Índia, pelos olhos da Ana Roots e do Tiago Rouxinol.


Com a Manuela Neves- do Projecto RELIGAR - Casa das Libelinhas, em Foz de Arouce- um espaço incrível para enraizar na Natureza- tenho-me adentrado na profunda intimidade com a terra e os seus ciclos, desde o toque, a massagem, o ioga ou as danças circulares.


Com a malta da Cooperativa Integral MINGA, de Montemor-o-Novo, em comunidade procuramos viver numa lógica de decrescimento, numa economia de base local, que promove o desenvolvimento sustentável. Com a vasta comunidade no Algarve, toquei a plasticidade de viver a Ecologia Profunda através da dança, em viagens sonoras, retiros de meditação e canto, em escolas da floresta, em hortas geridas por crianças, ou na tradicional Cooperativa do Graínho- uma terra e comunidade ímpares- que têm sabido preservar saberes ancestrais, continuando a difundi-los junto de novas gerações.


Na Quinta de Vale da Lama fiz uma imersão total na Permacultura e, desta família de estaca, mergulhei na fermentação com o Hugo Dunkel, a Maria Quintino e o Onur Malay.


Com a malta da Associação Terra Sintrópica, em Mértola, aprendo novas abordagens e emociono-me ao ver a história da regeneração a brotar da terra. Entre muitas outras pessoas e comunidades...


Que possamos todos continuar a “espalhar sementes”, como me disse a Joana Rosa, mulher madeirense que se tem dedicado a cuidar da terra.


Ecos da Ecologia Profunda


Várias pessoas me ecoaram o quanto lhes tocou ler a perspectiva e proposta da Ecologia Profunda, o quanto as fez refletir acerca da forma como vivem.


Mencionaram tópicos como a superficialidade do estilo de vida que têm, a distância da Natureza e o foco excessivo na dimensão tecnológica, o amiúde fechamento face a viver perdas e o inerente processo de luto, a raridade com que nos permitimos parar, a importância de estar em silêncio e acolher as transições na vida. Escutei histórias lindíssimas- como a do Ulises- que cantou para uma ovelha quando a encontrou em sofrimento e se sentiu impotente e a ovelha chorou.


Ecologia Profunda e Compaixão


Na abordagem do Trabalho que Reconecta, a mudança começa no nosso coração, nas emoções que se geram ao nos confrontarmos com a crueza da crise ecológica e social que vivemos.


O Budismo direciona que “A compaixão, a bondade amorosa e o altruísmo são as chaves não só para o desenvolvimento humano, mas também para a sobrevivência planetária. A verdadeira mudança no mundo só virá de uma mudança do coração. O que proponho é uma revolução compassiva, um apelo a uma reorientação radical, longe da nossa preocupação habitual com o eu. É um apelo para nos voltarmos para a comunidade mais ampla de seres aos quais estamos ligados e para uma conduta que reconheça os interesses dos outros juntamente com os nossos” (Dalai Lama e Patrick McDonnell: 2023). E acrescenta: “Só há dois dias no ano em que nada se pode fazer. Um chama-se Ontem e o outro chama-se Amanhã. Hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer.”


A compaixão reveste-se desta tríplice dimensão:


  1. O reconhecimento profundo do sofrimento;

  2. O compromisso pessoal em se envolver nessa realidade para mudá-la;

  3. Agir concreto - o abraçar esta realidade da qual somos interdependentes, como ilustra a bela foto da Cristiana Oliveira, Abraço das Liquidâmbares


O acompanhamento que proponho como Doula das Transições é uma das configurações em que me sinto chamada a ser-vir compassivamente.


Abraço das Liquidâmbares, na Praça Coronel Pacheco, Porto. Foto de Cristiana Oliveira
Abraço das Liquidâmbares, na Praça Coronel Pacheco, Porto. Foto de Cristiana Oliveira

Doula das Transições: Ecos da Terra a que procuro responder


Sintonizo muito com a pintora americana Georgia O’Keeffe -”Ver requer tempo”- e o tipo de acompanhamento que proponho é um convite a parar, por entre as turbulências que atravessamos, para ver, mais fundo. Para buscar na paisagem interior a raiz profunda que nos agarra à vida e nos faz, tal planta, elevar-se em direção à luz e a um sentido maior, onde possamos viver com gratidão pela dádiva que a vida representa, sorvendo com alegria o belo poema de António Ramos Rosa - “Estou vivo e escrevo sol”.


É um convite à conexão, por via da espiritualidade – uma espiritualidade da regeneração- que nos ajuda a religar ao todo de que somos parte, desde a nossa relação com a Natureza, uma relação que é intrinsecamente muito antiga e muito profunda.


É um convite a uma abordagem ampla que olha as nossas necessidades numa perspectiva integral.


É um convite a olhar a vida, as mudanças, as transições como ciclicidades, que podem ser atravessadas na lógica da Espiral da Ecologia Profunda e numa ótica de reciprocidade ecológica. Tal como Lee me partilhou num círculo contemplativo- “A forma como tomas conta de ti é a forma como tomas conta do mundo”.


É um convite a corporificar a compaixão, nos contextos concretos em que vivemos, desde a desprivatização da nossa dor e a amplificação das nossas redes comunitárias e de suporte, dos refúgios idiossincráticos que cada um necessita, porque na incompletude nos abrimos, para lá da arrogância da autossuficiência individualista que o capitalismo corporativo estimula.


É um convite a ritualizar a vida e cada uma das mortes que ela enceta.


É um convite a olhar a nossa morte como um processo que também desvela vida e transmutação.


É um convite a fazermos memória futura de quem somos.


*Dedico este artigo à Naomi Shihab Nye, celebrando a sua vida e o seu legado de bondade e encarnação da Ecologia Profunda.



“Quando o mundo enlouquece”, de John Roedel


Quando o mundo enlouquece

torna-te ardentemente gentil

para todos

toda a gente

toda a gente

toda a gente

meu amor,

~ não podes controlar grande coisa

mas podes controlar como

tratar os outros

nestas últimas notícias

tempos de partir o coração

quando nada parece certo

deixa a tua bondade crua

ser uma certeza

permite que a tua compaixão

se torne uma Estrela do Norte

gravada lá

no céu para

outros a seguirem

de regresso a casa.



Referências


  • Lama, Dalai; McDonnell, Patrick (2023). Heart to Heart: A Conversation on Love and Hope for Our Precious Planet. E-Book.

  • Savater, Fernando (1995). Ética para Um Jovem. Editorial Presença.



Recomendo consultar: 




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