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  • Foto do escritorRita Lança

A Ecologia Profunda: O Trabalho que Reconecta (TQR)

Dando continuidade à série Ecologia Profunda, neste artigo apresento O Trabalho que Reconecta, formulado por Joanna Macy.


Introduzo as motivações para o desenvolvimento deste modelo, a proposta concreta e os recursos que têm sido criados para que, individualmente e em comunidade, possamos dar corpo à Ecologia Profunda. Como proposta inspiracional partilho o vídeo The Great Turning, com Joanna Macy.


O Trabalho que Reconecta


Inspirada no Budismo e na Teoria Geral dos Sistemas, Joanna Macy, ativista doutorada em Ecofilosofia, tem vindo, no curso da sua longa vida (conta hoje com 95 anos), a traçar uma sui generis síntese entre os contributos da sabedoria espiritual oriental e a ciência ocidental contemporânea. O Trabalho que Reconecta é fruto desta bela fusão.


Como resposta ao que considerou serem as lacunas do movimento ecologista, nomeadamente a tendência para permanecer na visão crítica, na angústia e insatisfação face à crise ecológica, Macy colocou o foco no compromisso ético alicerçado na acção concreta, direccionada e no acolher o sofrimento e a incerteza, viver o luto deste processo como passos incontornáveis para seguir caminho enraizado, modelador do futuro.


Nesta proposta, a ética resulta de uma atitude profundamente reflexiva e produz os seus efeitos na vida concreta e interdependente, nos cenários onde somos parte, tal como uma planta não se dissocia da paisagem onde se insere, ela gera essa mesma paisagem, como minuciou o filósofo artista Emanuele Coccia (2019) em A Vida das Plantas.


O TQR é um modelo teórico-prático colaborativo, orientado para a mudança pessoal e social, difundido em contextos grupais em diversos países do mundo, suportado por uma rede de facilitadores que dinamizam regularmente workshops e formações.


Este itinerário profundamente vivencial apoia-se em exercícios, que nos convidam proactivamente a percorrer as etapas da Espiral do TQR, criando condições para que possamos, como células vivas de um corpo maior ao qual pertencemos, sentir e ecoar a dor do mundo (Macy, 2010).


A Espiral da Ecologia Profunda


Na proposta explicitada pelo TQR, as várias dinâmicas práticas têm em comum serem vivenciadas numa lógica espiral e fractal - representada por uma planta, taraxacum officinale, conhecida como dente de leão - que atravessa quatro fases:


  1. A gratidão;

  2. Honrar a nossa dor;

  3. Ver com novos olhos;

  4. Seguir caminho.


Gratidão


A espiral enraíza-se na gratidão, que abre o coração- agradecer a todos os seres e sistemas que geram e nutrem a vida-criando espaço para acolher a dádiva da vida, a beleza, o amor, a dor, e fortalecer a confiança nessa terra lavrada e fértil.


Honrar a nossa dor


Vislumbrando o medo, a angústia, a tristeza, a raiva que sentimos face à crise no mundo como respostas naturais, imbricadas no âmago da nossa identidade, plasmada na interconexão com todos os seres.


Estar verdadeiramente presente com a realidade tal como se apresenta, emocionando-nos e reconhecendo a nossa responsabilidade no estado do mundo e ritualizando a nossa vivência, as nossas intenções. Os incêndios que devastam as florestas, a nossa adição pelo consumo, as monoculturas intensivas, as guerras por recursos, os refugiados… Não permanecer aí, nas Vidas Secas, que de forma ímpar Graciliano Ramos retratou, ao traçar a saga de uma família no sertão nordestino do Brasil, assolada pela seca severa.


Reconhecer o sofrimento para procurar estratégias concretas para dele sair, desde a profunda compaixão, com esperança e olhos postos na regeneração resiliente, nas “placentas” do futuro (Ernst Götsch).


Ver com novos olhos


Perspectivando a mudança desde o horizonte do tempo profundo, desde o lugar de seres cósmicos que somos, que temos responsabilidade face a outras gerações, seres, face à história do universo, para além da história cronológica pessoal.


Como viver a mudança nos contextos dos quais somos parte? Qual o nosso papel e legado ao mundo? Qual o nosso contributo concreto? Como tão bem manifestou Gandhi, escolhendo ser a mudança que queremos ver no mundo. Como viver a mudança em comunidade?


Seguir caminho


De acordo com os dons que recebemos e os que temos desenvolvido, desde a nossa circunstância concreta.


Como podemos agir? Como começa a minha própria regeneração? Que regeneração posso trazer ao mundo? Que mudanças quotidianas posso assumir? Como vou agregar outros neste caminho? “Se não existe paz nas mentes dos indivíduos, como pode haver paz no mundo? Pacifica-te primeiro.” (S. N. Goenka).


Face a nova desolação, a espiral inicia-se novamente. Já sabemos onde procurar abrigo, parar no caminho, para recobrar forças- voltamos à gratidão e ao itinerário da espiral. A lógica da espiral pode aplicar-se a uma situação concreta que estamos a viver, a um processo continuado ao longo da vida, em que aprendemos a integrar estas dimensões perante situações desafiantes, como estratégias regeneradoras e que apontam direção, caminho, com consciência, presença, raiz e sentido.


No fundo, perante a desolação que possamos experimentar, permitimos parar e ressignificar, alargar a perspectiva, de que somos em interconexão, não ficamos no vazio ou nas emoções destrutivas ainda que a elas teremos de ir para delas sair. Vamos cá fundo, ao que nos liga ao todo, buscar o que nos sustem e daí pomo-nos novamente a caminho, com horizonte concreto e palpável.


Névoa na Montanha - TQR

Recursos Teórico-prácticos do TQR


Imbuído na filosofia budista, o TQR assume uma vertente prática que encara a transformação primeiramente como mudança pessoal, para se assumir integralmente como mudança social e ecológica.


O TQR disponibiliza diversos tipos de recursos teórico-práticos, como sejam vídeos, documentários e livros. Saliento dois livros: Nossa Vida Como Gaia e Esperança Ativa. Em ambos, são propostas reflexões e itinerários que nos ajudam a situar na realidade presente, guiando-nos desde a tela interior da nossa identidade profunda- a interdependência- em busca de reconexão, sentido enraizado e direção concreta.


Como me expressou um dia a Mónica Tátá, “a nossa identidade é uma parte da terra, única, mas nós derivamos e somos interdependentes com todos os outros seres na Terra, temos que despertar para a interexistência”. E esse despertar, de acordo com o TQR, implica ação, compromisso e envolvimento na mudança.


Proposta Inspiracional: The Great Turning


O vídeo que vos apresento, para aprofundar a visão e proposta do TQR, é The Great Turning with Joanna Macy (perdoem, o áudio e legendas estão somente disponíveis em inglês). Este vídeo (que podem ver no final do artigo), da filmmaker Katie Teague, insere-se no projecto Becoming Human in a Time Between Worlds, que pretende, segundo a autora, neste tempo de risco existencial e planetário, entrevistar pessoas que “pensam como um planeta vivo” e explorar a transformação emergente do “imaginário planetário”. 


Nesta entrevista, Joanna Macy, aborda tópicos como a desconexão da natureza e dos nossos propósitos e o quanto a nossa existência é permeável ao medo. Explica como, na sua prática, experimentou estimular a presença através da meditação e como tem aprendido que a voz que as pessoas mais precisam de ouvir é a interior, que estamos constantemente a encobri-la com diferentes formas de distrações e adições.


Menciona também que a angústia é necessária, ela é o reconhecimento da perda, de uma identidade em mutação. Mostra como caminho a importância das pessoas viverem este processo juntas, percebendo que quando se apaixonam umas pelas outras se apaixonam pela vida. Reconhece que o sofrimento é inerente a estarmos vivos, a cuidar e a amar este mundo e que acordar para a nossa verdadeira natureza- a nossa pertença à Terra, a todas as criaturas, futuros seres e ancestrais- é deixar a vida circular através de nós.


A voz cálida de Joanna Macy dizendo que “cada célula do nosso corpo é desta Terra”, ribombou dentro de mim a dor que senti em 2019, ao ver o vídeo A Runaway World da americana Diana Thater, no Museu Guggenheim, no País Basco. Filmou os últimos dias de vida do último rinoceronte branco, vigiado constantemente por guardas armados do parque, para protege-lo de caçadores furtivos.


Ecoou-me também a partilha do Emmanuel Goze, em Daloa na Costa do Marfim, quando antes de almoçarmos propus pararmos e agradecermos algo concreto. Como íamos comer carne de cabra, agradeci o animal que se sacrificou, para que pudéssemos comer carne, e ele emocionou-se muito. Disse que se parasse assim, possivelmente comeria carne com menor frequência, de forma mais consciente. Outra pista preciosa do TQR, o lugar do ritual na nossa vida quotidiana (um tema a que voltarei brevemente).


Macy incentiva a que nos fortaleçamos na incerteza, estando presentes, e traça três histórias a decorrerem neste tempo que atravessamos:


a) a do capitalismo corporativo, que decidimos chamar crescimento industrial da sociedade;

b) o desvirtuar deste sistema, que tem perdido a sua coerência;

c) a grande viragem, que é uma transição, em que estamos a aprender acerca de raízes comunitárias.


No TQR assume-se que temos que atravessar este tempo e esta viragem é assumida como visão, compromisso pessoal, por contraponto à avidez desmedida, à crueldade que dilacera o mundo. Mas como viver esta transição?


A evolução demonstra que têm que ser abandonados os antigos códigos, valores, comportamentos. A identidade muda e refaz-se. Desintegramo-nos para nos tornarmos mais capazes, mais sensíveis, mais realistas, para integrarmos a proteção da vida, a sabedoria espiritual e o conhecimento científico, numa vida mais consciente das nossas escolhas e dos seus impactos.


Sempre inspiradora, Macy murmura que estamos a aprender a escutar dentro de nós o pulsar da Terra e a nos amar uns aos outros - que tempo interessante para viver :)


Nas palavras de Kabir, poeta místico da Índia, “ Todos sabem que a gota se funde com o oceano, mas poucos sabem que o oceano se funde com a gota”.


No próximo artigo da série Ecologia Profunda, partilharei o modo como procuro viver a Ecologia Profunda, integrada na proposta de acompanhamento enquanto Doula das Transições





Referências


  • Coccia, Emanuele (2019). A Vida das Plantas. Uma Metafísica da Mistura. Documenta.

  • Macy, Joanna; Brown, Molly Young (2010). Nossa Vida Como Gaia – Práticas para Reconectar Nossas Vidas e Nosso Mundo. Editora Gaia.

  • Macy, Joanna; Johnstone, Chris (2020). “Esperança Ativa: lidando com a confusão em que vivemos sem perder a lucidez“. Bambual Editora.


Recomendo consultar: https://workthatreconnects.org/


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