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  • Foto do escritorRita Lança

A Ecologia Profunda

Este artigo enceta uma série dedicada à Ecologia Profunda, um dos movimentos que sustenta e inspira a proposta de acompanhamento que desenvolvo, enquanto Doula das Transições.

Este primeiro artigo foca-se numa perspectiva sobretudo teórica, assente nas bases fundacionais do conceito de Ecologia Profunda, na interseção com os conceitos de ecologia superficial, ecocentrismo e antropocentrismo.


Explico as origens, princípios e ideias chave que norteiam o Movimento da Ecologia Profunda, à luz dos escritos de Arne Naess.

Ilustro este artigo com uma gravura rupestre da Mauritânia, uma pintura de Graça Morais e uma poesia de Manoel de Barros.


Em torno do conceito de Ecologia Profunda


Numa pesquisa ampla, o termo Ecologia Profunda surge associado na ligação a mudanças climáticas, práticas de consumo sustentáveis e/ou a abordagens holísticas que procuram contribuir para uma nova consciência e práxis que reconhece a interdependência e fragilidade da vida, que coloca no centro a natureza e que vislumbra a humanidade desde o seu lugar no todo.


Gosto muito de uma frase do podcast americano Welcome to Night Vale, que ilustra o lugar donde amiúde nos perspectivamos e que demonstra o quão distantes estamos desta miríade, quando se refere à morte: "A morte só é o fim se presumires que a história é [só] sobre ti" ([só] é da minha autoria).


Associado ao termo Ecologia Profunda aparecem comumente os termos de ecologia superficial, ecocentrismo e antropocentrismo.


O conceito de Ecologia Profunda foi cunhado em 1973, num artigo escrito pelo filósofo norueguês Arne Naess, em oposição ao que apelidou de ecologia superficial.


O termo ecologia superficial apoia-se na visão convencional, segundo a qual o meio ambiente deve ser preservado devido à sua importância para o ser humano. Este modelo funda-se numa visão antropocêntrica, em que a humanidade domina a natureza, contribuindo para a degradação ambiental em grande escala, sendo a natureza encarada de forma instrumentalizada.


Inspirado por Spinoza e Gandhi, Naess corporificou uma abordagem nova, em que o próprio experienciou uma transição para um estilo de vida, em maior proximidade com a natureza, na linha do que Henry David Thoreau já havia preconizado no século XIX. A sua abordagem centra-se numa perspectiva ecocêntrica, em que o centro é a casa, entendida como natureza, postulando o equilíbrio na relação entre a natureza e o homem, sendo o homem parte da natureza.


O que é Ecologia Profunda?


A Ecologia Profunda é considerada uma filosofia e um movimento que questiona profundamente a realidade em que vivemos e que, de acordo com princípios enquadradores, remete para recomendações práticas, que podem confluir em diversas visões de mundo, prosélitas da máxima de que o nosso planeta é uma entidade viva, e não apenas um recurso “para interesses humanos míopes” (Naess: 1989).


O conceito assenta numa perspectiva Gestalt, que concebe que cada elemento da natureza, inclusive a humanidade, deve ser preservado e respeitado para garantir o equilíbrio do sistema da biosfera. O termo foi criado para contrapor o conceito, também formulado por Næss, de ecologia superficial, comummente apelidado de ambientalismo. Na abordagem superficial, o foco está mais nas consequências do que nas causas, tornando-a mormente oca em termos políticos (Guerreiro: 2019). Aborda temas como o esgotamento de recursos naturais, a extinção de espécies, procura minimizar o impacto ambiental provocado pelo crescimento económico.


Baseia-se numa visão extrativista face à natureza, segundo a qual, neste paradigma dominante, os humanos ocupam uma posição central face à natureza, e esta deve ser preservada para permitir a exploração de recursos naturais, que sustente um modelo capitalista orientado para a competitividade estrutural, tal como o descrito por Bob Jessop.


A Ecologia Profunda, pelo contrário, funda-se na radicalidade do questionamento e no colocar os grandes desafios no centro da arena pública e política, na acepção da pólis grega. Assenta também no entendimento de que as opções políticas de longo prazo que servem a biosfera servem também a humanidade, porque são indissociáveis. Exemplifico recorrendo à figura da Terra e dos Mares trazida por Naess (1989).


Numa abordagem superficial, as paisagens, ecossistemas, rios, mares são recortados em fragmentos, unidades, os quais são tratados como propriedades de indivíduos, organizações ou Estados. A conservação destes recursos é vista a partir da análise custo-benefício. São reconhecidos impactos para a vida selvagem, para a qualidade da água e solos, mas são dispensadas mudanças estruturais e profundas porque este modelo se alicerça na forte crença de que o futuro é o progresso tecnológico, legando para segundo plano conceitos como património comum da humanidade ou gerações vindouras.


Na abordagem da Ecologia Profunda, a Terra, os rios, o mar, a fauna e a flora, não pertencem aos seres humanos. Os seres humanos apenas habitam a terra, utilizando recursos para satisfazer necessidades vitais. A delapidação da vida natural não se soluciona exclusivamente por meios tecnológicos. As abordagens arrogantes das sociedades industriais devem ser combatidas.


Princípios e ideias chave da Ecologia Profunda


Pese embora os oito princípios que fundamentam a Ecologia Profunda tivessem sido propostos por Arne Naess e George Sessions, Naess (1989) reforça que o movimento ecologista da década de 60 já exercia ativismo nesta linha. Clarifica, todavia, que esse movimento encontrou resistências várias e silenciou-se na esfera pública, demitindo-se de assumir uma posição política interventiva.


Em detrimento de preconizar mudanças profundas e de longo alcance, o movimento ecologista da década de 60, restringiu a sua influência a publicações especializadas que, entre outros, inspiraram estudiosos como Naess, mas frustraram grandemente as pessoas atentas e preocupadas com estes temas, que se sentiram abandonadas pelos especialistas.

Naess (1989) reconhece o contributo inestimável de variados autores que contribuíram para a compreensão e emergência deste movimento, nomeadamente, inúmeros poetas e artistas, os americanos George Sessions e Bill Devall, bem como The Trumpeter: Journal of Ecosophy, lançado pelo canadiano Alan Drengson.


Os oito princípios da Ecologia Profunda, segundo Naess (1989), são:


  1. O bem-estar e o florescimento da vida humana e não humana na Terra são interdependentes da sua utilidade para propósitos e fins humanos, têm uma valor intrínseco em si mesmos.

  2. A riqueza e a diversidade das formas de vida são valores em si mesmos. A complexidade e a simbiose maximizam a diversidade.

  3. Os seres humanos não têm o direito de reduzir esta riqueza e diversidade, exceto para suprir necessidades vitais. A formulação do que são consideradas necessidades vitais deve ser lida à luz de condições diferenciadoras, relacionadas com o clima, estruturas das sociedades, entre outros.

  4. O florescimento da vida e cultura humanas é compatível com uma diminuição substancial da população humana. O florescimento da vida não humana requer essa diminuição. O impacto do estilo de vida e opções dos países materialmente mais ricos tem gerado consequências gravosas, como seja a extinção de espécies.

  5. O grau de interferência da espécie humana no mundo não humano é excessiva e este quadro tem-se vindo a agudizar. A luta para preservar e ampliar áreas selvagens ou quase selvagens deverá continuar, centrando-se nas funções ecológicas destas áreas. Uma dessas funções é que as grandes áreas selvagens são necessárias na biosfera para permitir a especialização evolutiva contínua de animais e plantas.

  6. A constatação do estado atual suscita posicionamento político, com consequente alteração de políticas que afetem as estruturas ideológicas, económicas e tecnológicas. O tipo de desenvolvimento económico levado a cabo pelos estados industriais é incompatível com os princípios 1 a 5. É preciso mudar de paradigma, por exemplo, o conceito “sustentável” é mormente aplicado por referência às pessoas e à escassez de recursos, numa linha económica, enquanto mercadoria. Estas medidas têm que ser aplicadas numa escala global.

  7. A mudança ideológica passa pela apreciação da qualidade de vida, diferentemente de padrões de vida elevados. Haverá uma consciência da diferença entre grande, associado a quantidade, e ótimo, prioritário.

  8. Aqueles que subscrevem os princípios anteriores assumem uma obrigação direta ou indiretamente de tentar implementar as mudanças necessárias. Parafraseando Bill Devall, um dos desafios da Ecologia Profunda é convertê-la num estilo de vida mas, simultaneamente, esse desafio é uma riqueza porque nos dá a oportunidade de redescobrirmos o que é essencial e significativo na vida.


Ecologia Profunda ilustrada


Deixo três convites, três formas distintas de arte, para que possam seguir estas pistas, mergulhando na vossa paisagem interior e buscando, aí dentro, o fio à meada da Ecologia Profunda na vossa vida.


  1. Gostaria de ilustrar este artigo com Maria (1982), a bela pintura a óleo e carvão sobre tela de Graça Morais, patente no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança. Devido a direitos autorais não será possível. Trata-se de uma obra fundamental da artista plástica portuguesa, forjada pelo contacto, na sua infância, com as gravuras rupestres do Vale do Côa, consagradas Património Mundial pela UNESCO, em 1998. Convoco a pintura telúrica de Graça Morais, pela sua capacidade de reavivar o grito ancestral no presente, para representar que a ameaça a um ser vivo, animal ou natural, constitui uma ameaça ao ser humano, à teia da vida. Nas palavras da pintora, a sua obra é a sua forma de luta neste mundo.

  2. A iconografia paleolítica transporta-nos para esta interconexão e não separatividade entre a natureza e o humano. Visitar a Gruta do Escoural em Portugal ou as Cuevas da Cantábria em Espanha, entre outras, observando as gravuras rupestres, desperta o imaginário de como a vida era ritualizada, em profunda comunhão com a natureza, de como a espiritualidade emanava da flora, da fauna, do ecossistema. Deixo-vos com uma foto de uma gravura rupestre na gruta de Agrour Amogjar, situada entre Chinguetti e Atar, no centro da Mauritânia. Esta gravura é peculiar porque a girafa representada atesta que esta área, hoje desértica, foi anteriormente uma savana.

Gravura rupestre na gruta de Agrour Amogjar, Mauritânia
Gravura rupestre na gruta de Agrour Amogjar, Mauritânia

3. Finalmente, deixo-vos na companhia da poesia Borboletas, de Manoel de Barros:


Borboletas me convidaram a elas.

O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.

Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.

Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,

um mundo livre aos poemas.

Daquele ponto de vista:

Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.

Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.

Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.

Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.

Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de

uma borboleta.

Ali até o meu fascínio era azul.


No próximo artigo da série Ecologia Profunda, partilharei o modelo que mais me inspira, dentro deste movimento, o Trabalho que Reconecta, formulado por Joanna Macy.


Referências Bibliográficas

  • Guerreiro, António (2019, 21 junho). “Ecologia Profunda e de Superfície” in Público

  • Naess, Arne (1973). “The shallow and the deep, long-range ecology movement: A summary”. Inquiry 16, 95–100.

  • Naess, Arne (1989). Ecology, Community, and Lifestyle: Outline of an Ecosophy. Cambridge: Cambridge University Press.

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